sábado, 20 de setembro de 2008

I - Eutopismo: disposições preliminares

   Um traço que deve caracterizar o ser humano, ainda não embrutecido pela própria fraqueza ou pela realidade tremenda, é a liberdade que ele se reserva de opor ao evento defeituoso, à situação decepcionante, uma força contraditória. Essa força poderia chamar-se esperança; esperança de que aquilo que não é, não existe, pode vir a ser; uma espera, no sonho, de que algo se mova para a frente, para o futuro, tornando realidade aquilo que precisa acontecer, aquilo que tem de passar a existir.

   Essa força talvez pudesse ser chamada, também, de força do sonho. Mas também esse seria um nome inadequado: acima de tudo, porque não somos nós que temos um sonho e, sim, o sonho que nos tem. Ele escapa a nosso controle, impõe-se a nós tanto quanto se insinua sobre nós essa realidade manca ou sufocante que precisa ser mudada. E é necessário termos o controle dessa mudança, algum controle. Sonhar apenas, portanto, não serve.

Teixeira Coelho

  Em 1516, o jurista inglês Thomas More publicou Utopia, livro que retrata a boa vida dos habitantes de uma ilha imaginária. Ou-topos, o não-lugar. Nessa ilha, um povo feliz vive em harmonia, numa sociedade com instituições comunistas. Em seu livro O que é Utopia, o também jurista José Teixeira Coelho Netto faz uma sintética, porém rica, análise do pensamento de More e de todo o ideário utópico através da história. Em suas reflexões, chega aos conceitos de distopia e de eutopia, que seriam as duas formas possíveis de topia, ou seja, a utopia aplicada em uma situação concreta. Em outras palavras: epistemicamente, "utopia" significa "lugar nenhum". Remete a um mundo onírico, ideal e inalcançável. Se preceitos utópicos forem aplicados numa sociedade real, eles se tornam tópicos. Obtemos, assim, a topia, o "lugar".  A topia pode ser uma distopia ou uma eutopia. Concentremo-nos, primeiramente, na distopia, que é a utopia/topia malograda.

   Nos projetos ditos utópicos, tenta-se alcançar a perfeição, obviamente. Para isso, é necessário corrigir todos os erros da estrutura social. Assim, teríamos que definir um comportamento ideal para cada ator, a fim de que tudo funcione direito. Não pode haver uma só peça fora do lugar. Cada indivíduo deve agir de um modo predeterminado, imposto. Para que todas as pessoas ajam dessa forma ideal, faz-se necessário um controle direto, com fiscalização férrea e punições eficientes. Nesse ponto, a utopia se transforma numa ditadura, com todas as sua implicações: vigilância, censura, repressão. Todos os atores que questionarem o modelo vigente serão excluídos, para que nada perturbe o "paraíso". A utopia se torna falsa, nega a si mesma. Essa é a distopia, o "lugar mau". 

   Pensemos no Comunismo de Marx e no Comunismo de Stálin. O primeiro visava à construção de uma sociedade justa, na qual todos poderiam usufruir dos bens e serviços produzidos. O governo seria composto pelo povo, e não por uma classe dominante e exploradora. E esse é um pensamento utópico, embora Marx se negasse a classificá-lo como tal, e até usasse a palavra para criticar pensadores socialistas, em especial Proudhon. A Revolução Vermelha aplicou os preceitos utópicos comunistas na União Soviética, e nós sabemos que o resultado não foi muito feliz. A ditadura staliniana ceifou muitas vidas, direta e indiretamente. Esse é, com certeza, o mais significativo exemplo histórico de como uma utopia se torna uma distopia.

   Como vimos, o Comunismo posto não deu certo. E é óbvio que sistema capitalista não é bem o melhor e mais justo para a humanidade. É angustiante. Precisamos construir uma utopia, que, aplicada, não se torne uma ditadura. Uma topia perfeita, harmônica, mas sem a necessidade de modos de agir predeterminados e controlados. A sociedade onde todos agiriam livres, mas de acordo com o bem comum. Essa sociedade Teixeira Coelho chama de eutopia, o "verdadeiro lugar", o "bom lugar". Partindo desse conceito, reuni idéias de vários pensadores, a fim de formular um modelo flexível e aplicável. Assim nasceu o Eutopismo, fortemente influenciado pelos princípios anarquistas e pela teoria geral dos sistemas de Bertalanffy, entre outras reflexões. Aviso novamente: não há nada de científico nisso. O "Eutopismo" nada mais é que um produto inacabado de minhas impressões pessoais, da minha visão tendenciosa, dos meus parcos conhecimentos, do discurso dos meus mestres. Colhi informações dos recantos mais inusitados: há traços de Psicologia, Sociologia, Economia, Direito, Biologia, teorias comunicacionais, histórias em quadrinhos, romances de ficção, desenhos animados, biografias, filmes. Espero que, no fim, tudo isso sirva para alguma coisa.

TO BE CONTINUED...

^_^

"Sejamos realistas: exijamos o impossível."

(Paris - Maio de 68)

Referência

COELHO NETO, José Teixeira. O que é utopia. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Coleção primeiros passos; 47)

P.S.: confirmando minha imaturidade teórica, alguns volumes da Coleção Primeiros Passos foram fundamentais para o desenvolvimento do Eutopismo (não é à toa que a própria palavra veio de um desses livrinhos adoráveis). Esforçar-me-ei, estudando a fundo os temas que, porventura, discutir. Assim, talvez esses esboços (esses "primeiros passos") cresçam e dêem frutos (um horrível lugar-comum, aliás).  

5 comentários:

. disse...

Olhemo-nos face a face. Somos hiperbóreos¹ - sabemos muito bem quão remota é nossa morada. "Nem por terra nem por mar encontrarás o caminho aos hiperbóreos": mesmo Píndaro, em seus dias, sabia tanto sobre nós. Além do Norte, além do gelo, além da morte - nossa vida, nossa felicidade... Nós descobrimos essa felicidade; nós conhecemos o caminho; retiramos essa sabedoria dos milhares de anos no labirinto. Quem mais a descobriu? - O homem moderno? - "Eu não conheço nem a saída nem a entrada; sou tudo aquilo que não sabe sair nem entrar" - assim suspira o homem moderno... Esse é o tipo de modernidade que nos adoeceu - a paz indolente, o compromisso covarde, toda a virtuosa sujidade do moderno Sim e Não. Essa tolerância e grandeza de coração que tudo "perdoa" e tudo "compreende" é um siroco para nós. Antes viver no meio do gelo que entre virtudes modernas e outros ventos do sul!... Fomos bastante corajosos; não poupamos a nós mesmos nem aos outros; mas levamos um longo tempo para descobrir aonde direcionar nossa coragem. Tornamo-nos tristes; nos chamaram de fatalistas. Nosso destino - ele era a plenitude, a tensão, o acumular de forças. Tínhamos sede de relâmpagos e grandes feitos; mantivemo-nos o mais longe possível dos fracos, da "resignação"... Nosso ar era tempestuoso; nossa própria natureza tornou-se sombria - pois ainda não havíamos encontrado o caminho. A fórmula de nossa felicidade: um Sim, um Não, uma linha reta, uma meta...

¹ - Os Gregos acreditavam que no extremo norte vivia um povo que gozava de felicidade eterna, os hiperbóreos, que nunca guerreavam, adoeciam ou envelheciam. Sem a ajuda dos Deuses, seu território era inalcançável. (N. do T.)

(O Anticristo, Friedrich Nietzsche).

Vou perdoar a mim mesmo pela triste analogia, a qual miseravelmente, construí. A utopia pode ser explicada em uma argumentação simples, até piegas, do ponto de vista racional. Os comunistas desejam a igualdade a qualquer custo. Os capitalistas, o poder a qualquer custo. Os cristãos desejam a pregação dos falsos valores. Os anarquistas desejam a descentralização do poder. Eu desejo passar no vestibular, meu vizinho deseja "pegar" alguma puta qualquer. Pois bem, esses são nossos desejos, os nossos falsos desejos! E quais as conseqüências de tudo? Aqui, apresento-lhe o verdadeiro significado da Utopia. O resto é fruto do homem moderno, de nossas ambições e do vizinho tarado.

Anônimo disse...

Shai, vc é ótima!!!
adoro seu estilo!
ah e adorei a aula que vc acabou de me dar! todos esses conceitos...
=D

Mires disse...

Teoria instigante e, ao mesmo tempo, maravilhosa...
estou ansiosa por ver a continuação desse post... ^^
Shay, é impossível algo nos seus discursos não frutificar!
;D
Utopia...um grande livro...
>>A sociedade cria criminosos para depois puni-los<<

Particularmente, ainda estou metabolizando qual o modo que mais me agrada...(nem capitalismo, nem o socialismo como um todo)
porque vejo tantos erros em tantas proposições...

quem sabe, eu não viro eutopista?
ou shaytopista???

auishiuhsiuahsiuahusihas

te adoro, minha linda!
beijão!

Clarissa Santos disse...

Olá. Muito, muito obrigada pelos elogios! :)
Eu também faço comunicação social *_*
(e Arte e mídia)
Acho que aprendi mais com esse texto que com muitas aulas que tive :P

Parabéns, menina! :D
Estou esperando a continuação \o\
Adoro quem sabe escrever..digamos, 'jornalísticamente', não sei explicar, é desse jeito aí que tu escreve :D
assim como Mires, quem sabe eu não me torne Shaytopista :D

beijoooos *:

Mires disse...

A arte é como uma árvore. A árvore morre, o vaso quebra, mas o Criador permanece - seja em memória, em matéria ou em espírito! O artista sempre deixa um pedaço da sua obra por aí, seja no barro ou nos corações de seus admiradores.