Um traço que deve caracterizar o ser humano, ainda não embrutecido pela própria fraqueza ou pela realidade tremenda, é a liberdade que ele se reserva de opor ao evento defeituoso, à situação decepcionante, uma força contraditória. Essa força poderia chamar-se esperança; esperança de que aquilo que não é, não existe, pode vir a ser; uma espera, no sonho, de que algo se mova para a frente, para o futuro, tornando realidade aquilo que precisa acontecer, aquilo que tem de passar a existir.
Essa força talvez pudesse ser chamada, também, de força do sonho. Mas também esse seria um nome inadequado: acima de tudo, porque não somos nós que temos um sonho e, sim, o sonho que nos tem. Ele escapa a nosso controle, impõe-se a nós tanto quanto se insinua sobre nós essa realidade manca ou sufocante que precisa ser mudada. E é necessário termos o controle dessa mudança, algum controle. Sonhar apenas, portanto, não serve.
Teixeira Coelho
Em 1516, o jurista inglês Thomas More publicou Utopia, livro que retrata a boa vida dos habitantes de uma ilha imaginária. Ou-topos, o não-lugar. Nessa ilha, um povo feliz vive em harmonia, numa sociedade com instituições comunistas. Em seu livro O que é Utopia, o também jurista José Teixeira Coelho Netto faz uma sintética, porém rica, análise do pensamento de More e de todo o ideário utópico através da história. Em suas reflexões, chega aos conceitos de distopia e de eutopia, que seriam as duas formas possíveis de topia, ou seja, a utopia aplicada em uma situação concreta. Em outras palavras: epistemicamente, "utopia" significa "lugar nenhum". Remete a um mundo onírico, ideal e inalcançável. Se preceitos utópicos forem aplicados numa sociedade real, eles se tornam tópicos. Obtemos, assim, a topia, o "lugar". A topia pode ser uma distopia ou uma eutopia. Concentremo-nos, primeiramente, na distopia, que é a utopia/topia malograda.
Nos projetos ditos utópicos, tenta-se alcançar a perfeição, obviamente. Para isso, é necessário corrigir todos os erros da estrutura social. Assim, teríamos que definir um comportamento ideal para cada ator, a fim de que tudo funcione direito. Não pode haver uma só peça fora do lugar. Cada indivíduo deve agir de um modo predeterminado, imposto. Para que todas as pessoas ajam dessa forma ideal, faz-se necessário um controle direto, com fiscalização férrea e punições eficientes. Nesse ponto, a utopia se transforma numa ditadura, com todas as sua implicações: vigilância, censura, repressão. Todos os atores que questionarem o modelo vigente serão excluídos, para que nada perturbe o "paraíso". A utopia se torna falsa, nega a si mesma. Essa é a distopia, o "lugar mau".
Pensemos no Comunismo de Marx e no Comunismo de Stálin. O primeiro visava à construção de uma sociedade justa, na qual todos poderiam usufruir dos bens e serviços produzidos. O governo seria composto pelo povo, e não por uma classe dominante e exploradora. E esse é um pensamento utópico, embora Marx se negasse a classificá-lo como tal, e até usasse a palavra para criticar pensadores socialistas, em especial Proudhon. A Revolução Vermelha aplicou os preceitos utópicos comunistas na União Soviética, e nós sabemos que o resultado não foi muito feliz. A ditadura staliniana ceifou muitas vidas, direta e indiretamente. Esse é, com certeza, o mais significativo exemplo histórico de como uma utopia se torna uma distopia.
Como vimos, o Comunismo posto não deu certo. E é óbvio que sistema capitalista não é bem o melhor e mais justo para a humanidade. É angustiante. Precisamos construir uma utopia, que, aplicada, não se torne uma ditadura. Uma topia perfeita, harmônica, mas sem a necessidade de modos de agir predeterminados e controlados. A sociedade onde todos agiriam livres, mas de acordo com o bem comum. Essa sociedade Teixeira Coelho chama de eutopia, o "verdadeiro lugar", o "bom lugar". Partindo desse conceito, reuni idéias de vários pensadores, a fim de formular um modelo flexível e aplicável. Assim nasceu o Eutopismo, fortemente influenciado pelos princípios anarquistas e pela teoria geral dos sistemas de Bertalanffy, entre outras reflexões. Aviso novamente: não há nada de científico nisso. O "Eutopismo" nada mais é que um produto inacabado de minhas impressões pessoais, da minha visão tendenciosa, dos meus parcos conhecimentos, do discurso dos meus mestres. Colhi informações dos recantos mais inusitados: há traços de Psicologia, Sociologia, Economia, Direito, Biologia, teorias comunicacionais, histórias em quadrinhos, romances de ficção, desenhos animados, biografias, filmes. Espero que, no fim, tudo isso sirva para alguma coisa.
TO BE CONTINUED...
^_^
"Sejamos realistas: exijamos o impossível."
(Paris - Maio de 68)
Referência
COELHO NETO, José Teixeira. O que é utopia. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Coleção primeiros passos; 47)
P.S.: confirmando minha imaturidade teórica, alguns volumes da Coleção Primeiros Passos foram fundamentais para o desenvolvimento do Eutopismo (não é à toa que a própria palavra veio de um desses livrinhos adoráveis). Esforçar-me-ei, estudando a fundo os temas que, porventura, discutir. Assim, talvez esses esboços (esses "primeiros passos") cresçam e dêem frutos (um horrível lugar-comum, aliás).